No artigo anterior relembramos outros, de 2019 e 2021, que criticavam a reforma tributária porque o próprio público que clamava por “reforma tributária” não sabia o que isso significava, nem o que realmente queria, dando carta branca aos políticos para que fizessem o que bem entendessem.
É claro que seria um desastre, como efetivamente o foi, criando um monstro com potencial de consumir a tudo e a todos. Muitos dos apoiadores desse absurdo agora divulgam notas aqui e acolá “surpresos” e até “indignados” com os rumos que as coisas tomaram, tais como o fato de que o país provavelmente terá o maior “IVA” do mundo. Quem poderia imaginar, não é mesmo? E deve piorar.
Para entender o que a reforma trouxe, é preciso entender o planejamento óbvio que estava por trás e que, francamente, não vi ninguém comentar.
O parâmetro utilizado foi o de “anomia”.
“Anomia” é um conceito sociológico que prescreve a ausência de normas, podendo ser entendidas nesse contexto como “balizas”.
Quando um país está em hiperinflação, ninguém mais sabe o quanto as coisas valem, pois não há mais qualquer baliza, qualquer ponto de comparação. Esse é um exemplo de anomia.
Na reforma tributária até aqui aprovada está claro que essa técnica foi utilizada de forma deliberada. Foram extintos os tributos sobre o consumo de natureza estadual (ICMS) e municipal (ISS), condensados no “IBS” (Imposto sobre Bens e Serviços). O tributo de consumo federal (IPI) se “somará” a outros tributos federais (natureza jurídica de “contribuição”) que serão extintos, o PIS e a COFINS, sendo substituído pela “CBS” (Contribuição sobre Bens e Serviços).
A maior demonstração dessa “anomia” veio dos próprios Estados, que observando as regras de repartição que passariam a ser utilizadas no caso da aprovação da reforma – que efetivamente veio a ocorrer – partiram para aumentar suas alíquotas de ICMS atuais. Esse fenômeno aconteceu com 11 dos 26 Estados e nem todos fizeram ao mesmo tempo, mas em sequência, sugerindo que até mesmo as Fazendas estavam com dificuldade de realizar cálculos e previsões.
Mas, agiram para tentar deixar a sardinha um pouco mais próxima da brasa geral do IBS.
Pronto. Passada essa observação, chegamos ao momento da aprovação, feita de forma remota pela Câmara dos Deputados.
O fato de que a economia brasileira seria alterada em definitivo, provavelmente pelos próximos 40 ou 50 anos, não pareceu motivo suficiente para sensibilizar nossos representantes a se reunirem em um dia quente de dezembro, já próximo das festividades de final de ano.
Só que essa reforma tributária, através de Emenda Constitucional, não se basta, mas demanda regulamentação. Serão pelo menos 71 pontos a serem resolvidos através de Lei Complementar.
Para tanto, o governo divulgou a formação de “grupos de trabalho” com pessoas que elaborarão as normas a serem discutidas na Câmara e Senado.
Não há sequer um representante dos contribuintes.
Não há nenhum especialista em Direito Tributário desvinculado da Receita Federal do Brasil ou de outras entidades fiscais ou de representação judicial do Estado.
Não há nenhum acadêmico da área.
Considerando que o rombo nas contas públicas em 2023 foi de R$ 145 bilhões e que em 2024 o governo sequer ruboriza ao dizer que já prevê novo déficit, levando os gastos públicos ao patamar das despesas da época do auge da pandemia, não é difícil ligar os pontos para prever o que aconteceria com a proposta legislativa.
A tal “regulamentação” foi entregue na Câmara dos Deputados na semana passada, em um documento de 300 páginas e com mais de 500 artigos, mesmo com a desculpa de que a reforma tributária iria “simplificar” o sistema tributário.
Para se ter uma ideia comparativa, o Código Civil, que regula basicamente todas as relações entre particulares, inclusive empresas, tem 2.000 artigos.
A regulação de “poucos” tributos tem 1/4 do número de dispositivos.
Mas, não para por aí.
A “regulamentação” traz alíquota média de quase 27% só nesses tributos (lembrando que a tributação do patrimônio – IR e afins – não faz parte dessa etapa da reforma).
O “chefe” da reforma, Bernard Appy, esclareceu que as alíquotas podem variar “a depender do grau de sonegação que o novo sistema terá”.
Bem, por definição, “sonegar” é o mesmo que “ocultar” informações. Se o Estado tem as informações, é inusitado falar em “sonegação”, de modo que isso seria necessariamente algo ao qual ele, Estado, não teria acesso.
Ou seja, está aberto o convite ao governo para fabricar “estatísticas de sonegação”, que embasarão as alíquotas dos tributos para todo o país. Não duvido que a fonte possa vir a ser os caricatos “sonegômetros” que vez ou outra são vistos por aí.
Enfim, por que o setor produtivo, que irá pagar esse prejuízo, não se manifesta?
Em parte, houve reações setoriais pedindo descontos nos tributos de suas categorias, como os advogados. A questão do clientelismo será certamente reforçada.
De outro lado, ninguém realmente sabe o custo total que efetivamente virá. É o efeito da anomia.
Quando estive na França, uma guia muito culta contou que quando a Torre Eiffel fora erguida, nos últimos anos do século XIX, os parisienses, acostumados aos prédios finamente decorados por dentro e por fora, chocados com aquela construção de metal bruto, a chamavam de “le monstre”.
Hoje, o “monstro” não só está adaptado à paisagem, mas é um orgulho e símbolo da França.
Um dia nos acostumaremos com o nosso monstro?
Bruno Barchi Muniz – é advogado, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos, Pós-Graduado em Direito Tributário e Processual Tributário pela Escola Paulista de Direito (EPD), membro da Associação dos Advogados de São Paulo. É sócio-fundador do escritório Losinskas, Barchi Muniz Advogados Associados – www.lbmadvogados.com.br