Como bons brasileiros que somos, findo o Carnaval, retornamos às regulares postagens no Blog.
E o primeiro assunto, como não podia ser diferente, é o início do julgamento do “rol da ANS”, pelo STJ.
O tema tem mobilizado muitas pessoas, inclusive famosos, com destaque para um vídeo do apresentador Marcos Mion que viralizou nas redes sociais, com explicação muito lúcida e clara sobre o ponto de vista, riscos e consequências do que poderá vir a ser decidido.
Antes de tudo, vamos relembrar o tema, sobre o que se está discutindo.
A ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) é uma agência reguladora estatal que intervém no mercado de saúde com o pretexto de regulamentar essa atividade que, segundo nossa Constituição, é de natureza pública, em relação à prestação de serviços por entidades particulares.
O declarado objetivo dessa entidade é, ao regulamentar essas atividades, proteger os consumidores desta seara, motivo pelo qual tem íntima relação com os planos de saúde, suas atividades e prestações.
Desde muito tempo criou-se o agora mais famoso do que nunca “rol da ANS”, que prevê a cobertura e procedimentos que os planos de saúde deverão conceder aos usuários.
E aí surgiu a questão: esse rol é exemplificativo ou taxativo? Em outras palavras: ele prevê de forma limitada o que os contratos de plano de saúde devem prover aos usuários ou eles meramente estabelecem uma espécie de cobertura mínima, como se fosse demonstrar o mínimo que se pode esperar ao contratar um plano de saúde, como forma de orientar as próprias empresas a como se preparar para prestar serviços?
As empresas do setor obviamente defendem que o rol é taxativo; ou seja, que somente devem prestar os serviços ali previstos ou, então, estarão em desvantagem contratual, pois poderão vir a arcar com valores maiores do que os previstos quando formalizaram contrato com o usuário do plano.
Os consumidores, por outro lado, entendem que o rol é exemplificativo, de modo que os planos de saúde devem cobrir as doenças que surgirem. Caso contrário, para que se contratar um plano antecipadamente, quando se está saudável?
Em aspecto prático, precisamos primeiro nos perguntar: quem está nas agências reguladoras? Não só na ANS, mas em praticamente todas elas não raro os principais cargos estão distribuídos a pessoas ligadas ao mercado ou a empresas do ramo.
Considerando que muitas das condutas adotadas por essas mesmas agências são nitidamente voltadas para beneficiar as empresas, e não os usuários, é de se questionar se não é pelo menos imprudente esse modelo.
Na verdade, os estudiosos do Direito Administrativo, ramo que se debruça sobre essas relações, de tanto ver situações do tipo, já criou até mesmo um termo para designar essa situação: “captura da agência reguladora”, que é quando empresas do ramo diretamente vinculadas à agência literalmente a tomam por dentro.
O segundo ponto é analisar a própria existência da agência reguladora e de seu rol: ela é necessária ou, pelo menos, deveria adentrar em assuntos tão aparentemente desnecessários, considerando que já existe legislação sobre planos de saúde e o Código de Defesa do Consumidor, ambos impondo princípios a serem observados para o entendimento de cada caso concreto?
O terceiro: por que será que o mercado de planos de saúde é tão restrito no Brasil, com tão poucos players? É a mesma situação que acontece com outras agências reguladoras, como as de setores de telefonia, bancário, de energia etc.. Não há como escapar das mesmas empresas.
O quarto: considerando toda essa situação, seria interessante para a ANS manter um rol de procedimentos atualizado de acordo com as melhores e mais modernas técnicas da medicina? Mais ainda: é possível manter uma tabela atualizada, considerando que a ciência médica é muito mais ágil do que a consolidação posterior dos procedimentos, havida justamente pela reiteração dessas mesmas técnicas em diversos casos?
Saindo dos questionamentos e voltando ao mundo dos fatos, sabemos que incontáveis procedimentos que não constavam do rol da ANS somente foram a ele incorporados após múltiplas decisões judiciais condenando as empresas do ramo a concederem o tratamento demandado por seus consumidores.
Sem os processos e o Judiciário, afirmamos sem medo de errar que esse rol seria sensivelmente mais magro.
Do ponto de vista das empresas, o que será melhor, um rol mais vasto e atualizado ou mais restrito e desatualizado? E do ponto de vista do consumidor?
Como já dissemos, quem contrata um plano de saúde assim o faz para ter uma cobertura parcial ou completa? Alguém se animaria a contratar plano para cobrir alguma coisa ou outra, apenas?
Não é raro pessoas pagarem planos de saúde por décadas a fio sem precisar de qualquer uso e, quando finalmente precisam, em momento de especial desolação pela descoberta de doenças importantes, não são atendidas, sob o pretexto do tal rol da ANS.
Existe uma velha lição de Nelson Nery Júnior que é sempre reprisada, podendo ser parafraseada no seguinte: quem quer contratar plano de saúde, quer cobertura total. Não se paga plano de saúde para, na hora da doença, não ser atendido, de modo que a empresa que se furta a cobrir certas moléstias estará agindo de má-fé e frustrando a parcela que lhe cabe no contrato.
Olhemos mais detidamente para a questão à luz do Direito do Consumidor. Se o rol da ANS é taxativo, significa que o consumidor deve estar plenamente ciente do que está contratando, ou seja, de quais serviços poderá vir a tomar e de que forma poderá tratar cada tipo de doença.
Que consumidor comum é capaz de entender quais são e o que significam os procedimentos narrados no dito rol?
Precisaríamos, por exemplo, saber de forma suficientemente detalhada o que é uma “trissegmentectomia”, uma “pletismografia peniana noturna” ou “rearranjo gênico células B por PCR”.
A situação não só é absolutamente ridícula, mas pode ser entendida como o completo reverso do Direito do Consumidor, que reconhece que esse precisa ser protegido justamente porque não tem capacidade técnica de compreender.
Do conflito entre essas tensões, sobra somente a boa-fé: tenho um plano de saúde porque quero tratamento quando ficar doente, e não ficar discutindo se terei direito, apesar de tê-lo contratado. Negar isso é o mais completo absurdo, mas é o que as empresas e, diga-se claramente, a ANS querem fazer valer.
E nem se venha dizer em “desequilíbrio” no contrato.
O Judiciário, até aqui, sempre foi praticamente unânime em reconhecer o dever de fornecimento de amplo tratamento às moléstias, excluindo apenas o dever de custear tratamentos declaradamente experimentais.
Portanto, pelo menos desde 1998, há 24 anos, as empresas já sabem como o Direito do Consumidor é interpretado no Brasil. Não há motivo jurídico para, de boa-fé, não terem se adaptado a tanto.
Não por acaso os planos de saúde lamentavelmente sempre figuram entre as empresas mais reclamadas por consumidores.
Mesmo assim, com incrível surpresa, essa discussão sobre o rol da ANS conseguiu ser levada para Brasília (STJ) com status de grande questão polêmica.
O julgamento se encontra empatado em 1 a 1 e, por incrível que pareça, apesar da obviedade do Direito no caso, o resultado é incerto.
Afinal, como dizia Roberto Campos, “no Brasil, até o passado é incerto”.
Bruno Barchi Muniz – é advogado, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos, Pós-Graduado em Direito Tributário e Processual Tributário pela Escola Paulista de Direito (EPD), membro da Associação dos Advogados de São Paulo. É sócio-fundador do escritório Losinskas, Barchi Muniz Advogados Associados – www.lbmadvogados.com.br