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Que tal negociar suas dívidas com o governo? As impressões sobre o primeiro ano da nova transação tributária

Em abril/2020 entrou em vigor a Lei nº 13.988/2020, que trouxe uma novidade não tão nova assim: a transação tributária.

Digo isso porque o Código Tributário Nacional, de 1.966, já previa essa possibilidade, mas que nunca foi exercida ou regulamentada, permanecendo apenas como uma hipótese até então.

A transação tributária é, de fato, uma transação, ou seja, uma negociação e possibilidade de concessão mútua para que as partes possam chegar a um acordo. Assim, pode o Estado abrir mão de alguma coisa, o contribuinte de outra e, assim, chegarem a um denominador comum para a quitação de dívidas vencidas. O mecanismo não serve para se negociar tributos ou outros valores futuros.

Com fundamento na legislação federal, outros entes já começaram a editar suas próprias leis regulamentando a transação em seu próprio âmbito, como no caso do Estado de São Paulo e sua Lei nº 17.293/2020.

Para nossa análise, vamos nos ater à legislação federal, por ser a primeira e a que inspirou todas as demais, que possuem particularidades não abarcáveis nesse nosso assunto.

Pois bem. O lapso da instituição da transação tributária desde 1.966 até 2.020 não foi à toa. O grande obstáculo para uma transação tributária é, e sempre foi, o fato de que o tributo é dinheiro público e, portanto, “indisponível”.

“Indisponível”, nesse sentido, é algo do qual não se pode dispor, exceto por permissão legal. Não por acaso todos os parcelamentos tributários, ordinários ou excepcionais, foram instituídos por meio de lei.

Então, como regra, se o tributo ou outros créditos dos entes públicos são valores indisponíveis, eles não são passíveis de transação, pois não pode o Estado fazer concessões que impliquem em redução do valor que teria a receber como crédito. Esse é o mundo ideal, frio e engessado do Direito.

E, talvez, seja até mesmo razoável que esse seja o raciocínio de partida. Há, de fato, uma justa previsão de que a corrupção e desonestidade que marcam nosso país também contaminariam o instituto da transação tributária.

No entanto, olhando para o assunto de forma mais realista, e de boa-fé, a dívida que as pessoas físicas e jurídicas têm com os entes públicos é enorme e a falta dessa arrecadação causa um desfalque expressivo ao Estado, havendo uma situação “travada” em que não existe meio termo.

Dos devedores, há uma parcela expressiva que deseja pagar, mas não consegue se adequar às condições propostas nos parcelamentos, que, realmente, servem como um remédio único para uma infinidade de doentes diferentes.

Os parcelamentos, pelo menos desde o início dos anos 2000, não estão sendo muito eficientes, pois recuperam basicamente créditos que a Fazenda já sabia que algum dia provavelmente recuperaria. Continuava sem receber justamente os valores tidos por de difícil recebimento, dados por “perdidos”.

Além disso, as regras de parcelamento acabavam sendo, às vezes, injustas com os contribuintes bem intencionados que queriam pagar, embora estimulassem a má-fé dos mal intencionados que nunca querem pagar corretamente, que apenas “seguram” o pagamento de tributos até o próximo “REFIS”.

Através da transação isso deverá ser menos comum, já que a própria lei estipula no sentido de vedar o acesso desse tipo de contribuinte às negociações (art. 5º, III), embora ainda careça de amadurecimento de tempo para verificar como funcionará essa situação na prática.

Enfim, há três tipos distintos de transação.

O primeiro tipo é a “transação por adesão”, hipótese em que o Estado divulga um edital com as normas que considera necessárias para a transação, estabelecendo prazos, parcelas e todos os critérios que bem entenda, sem real possibilidade de negociação.

Embora os teóricos proponentes da transação queiram dizer que não se trata de uma hipótese de parcelamento, como das modalidades anteriores, impossível se negar que acaba por ser, sim, um parcelamento com regras próprias sob formatação muito similar aos “REFIS”, embora, agora, sem necessidade de estabelecimento por lei.

O segundo tipo é a “transação de contencioso”, feita para casos relacionados a débitos “objeto de relevante e disseminada controvérsia jurídica”. Ou seja, serve para os casos que estão em franca discussão nos tribunais ou em vias de encerramento com resultado provavelmente desfavorável ao contribuinte, limitado às hipóteses que o fisco assim habilita.

É outra modalidade de “transação por adesão”, merecendo as mesmas observações anteriores e um acréscimo: se bem explorada essa forma, é possível se encerrar um número imenso de processos judiciais repetitivos sobre os mesmos temas. No entanto, ao menos por ora, a Fazenda não parece animada em abrir transações para os temas mais polêmicos sob discussão, já que apenas houve edital de transação a respeito das contribuições previdenciárias incidentes sobre Participação nos Lucros e Resultados (PLR).

Reconheça-se, porém, que como a transação somente serve para débitos vencidos, talvez não seja suficiente para evitar a vinda de novos processos sobre os mesmos assuntos quando vincendos. Somente o tempo dirá como será a relação entre Estado e contribuinte a esse respeito.

A terceira modalidade é a “transação individual”, em que há negociação direta entre o devedor e o fisco, visando a quitação de tributos vencidos. É a transação por excelência, com mútuas concessões para encerramento do litígio.

O problema prático dessa modalidade, a melhor dentre todas, é que a Procuradoria Geral da Fazenda editou uma norma que somente habilita para essa espécie os contribuintes com dívidas superiores a R$ 15 milhões. Débitos inferiores cairiam somente na hipótese de adesão, retornando à péssima situação do remédio único para doentes diferentes.

É verdade que o Judiciário tem concedido liminares para afastar essa limitação não prevista em lei, mas, reconheça-se, a inexistência de qualquer filtro acabará por prejudicar o andamento das análises administrativas das propostas de transação, que certamente chegariam às centenas de milhares.

Isso, porém, não deve ser obstáculo para o contribuinte exercer o direito de propor transação individual, mas deverá o Estado providenciar os meios para prover o atendimento a essas demandas.

Estamos apenas dando os primeiros passos no ambiente da transação tributária, mas com grande esperança de que seja um bom instrumento para resolver litígios, permitir ao devedor pagar o que deve e permitir ao Estado aprimorar legalmente sua arrecadação, recebendo valores antes considerados perdidos em definitivo.

É claro que o desenrolar dos acontecimentos dependerá essencialmente de um moderado apetite arrecadatório por parte do Estado e, também, de uma visão não oportunista do contribuinte, que não deverá lançar mão desse fator de negociação de forma abusiva ou desnecessária. Esperamos sinceramente que assim seja.

Cabe, enfim, observar que a Lei nº 13.988/2020 é resultado da conversão da Medida Provisória nº 899/2019, de iniciativa do Executivo Federal, e nesse tempo tem sido a primeira vez – pelo menos desde quando posso me lembrar – que a legislação não é feita com o governo pressupondo que o povo destinatário da norma é “malandro”, corrupto ou que vai deturpar a finalidade da lei.

A Lei de Liberdade Econômica, também iniciada como Medida Provisória, possui esse mesmo espírito de boa-fé que vemos na norma que institui essa transação tributária. Há, ao menos em princípio, a premissa maior de que os atos serão feitos com honestidade e lealdade, sendo que os desvios podem ser punidos pelas leis que coíbem a improbidade ou até mesmo criminalmente.

Embora no Brasil o otimismo seja quase uma imprudência, vamos nos permitir alguma animação com essas novas leis.

Por Bruno Barchi Muniz

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